segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O garoto à janela. E a garota:
- O que é que tá olhando pra você?

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

E como é que eu ia saber
Que você
- Que pra mim era eu -
Era outro pra você?

domingo, 16 de agosto de 2009

Mojave

Não dê amor e carinho
se você não for levar pra casa
depois
alguém disse
Quando o cachorrinho
- roliço de tanto verme -
- sem jeito de tão pouca vida -
Riu.

E eu
só fui entender
quando a mão dele
me afagou os cabelos
sem
me tocar.

Agora
o depois
é nada
mais
que essas palavras

Livro
lançado
ao pó.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Botas e flores
- De ninguém


A voz
do carro-de-som
Se chocou no escudo
E me recebeu
Falando a todos
Falando a ninguém
Falando numa língua que eu não entendo.
O olhar curvo
Da farda
Me olhou de cima
sem se curvar
E eu não pude ver
O homem que morava ali.
Os outros olhos fardados
De trás da curva de acrílico
Se lançavam para a multidão
E não encontravam
Nada
a não ser contas e esposas e chefes.
E medos.
Eu tive medo por eles
Medo deles
E quis tirar suas botas
Que
- olha só -
Pisavam flores
De ninguém.
De mercado
De clichês
- Flores das pessoas que posavam o protesto antes de protestar.

Câmeras
Lá de cima do carro-de-som
Diziam
- Posem mais -
E as fardas
em curva
Apertaram um pouco mais
A garganta do espetáculo.
Aí fumaça
Gritos
Borracha
- De trás do escudo para o centro do palco -
Medo
- De trás do escudo para o centro do palco -
E o escudo
Sem quebrar
Sem cair
Trincou.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Parque em Ironia

A voz cantava o guarda belo só pra mim
E descantava sua beleza
Enquanto as árvores passavam os passos que passavam as árvores.
Mas o querer ser
Todo o poder ser
Calou-se, sepulcral,
Quando a massa de fora
Em vozes várias que eram uma e eram nenhuma
Fez ouvir:
Marinha do Brasil
Orgulho nacional

Dente

Condescendência e monotonia. Os olhos não exigiam nada. Marcelo de Paula Cunha! Só procuravam, só encontravam - às vezes um solzinho na janela, outras um olhar incomodado pego de surpresa, vez ou outra até um fio de cabelo perdido pelo casaco. Carolina Macedo! Os pés balançavam debaixo da cadeira, intermitentes. O suspiro vinha às vezes, nada muito desesperado por atenção. Era só a paciência se esvaindo no conta-gotas. Tamires Souza de Mello! O livro que havia chegado pela metade já estava acabado, notas de rodapé e tudo. Uma cruzadinha preguiçosa se arrastava sem muito sucesso, quinze cruzadinhas depois. Roberto de Carvalho! O livrinho de passatempos e a caneta mal se sustentavam nas mãos desinteressadas. Dez e meia da manhã. Havia chegado às sete e meia. Finalmente, a voz todo-poderosa da recepcionista lhe concedeu o fim da espera: Joanna Gusmão!
Corredor, escadas, corredor. Joanna e toda sua vontade de agradar seguiram até a sala indicada derramando sorrisos e bom dias por todos os lados, provocados ou não. Abriu a porta. Pode sentar, por favor. O dente se acomodou na cadeira enquanto a moça de branco acabava de arrumar suas brocas e lâminas e agulhas. O dente engoliu a seco. As mãos se contraíram, apertando todas as perguntas numa só: vai doer? Não, não vai doer nada, você vai ver.
Picadinha! A primeira dor veio maior do que o anunciado. A outra moça de branco entrou e se sentou de frente para a primeira, a cadeira no meio e, sobre ela, o dente, um tanto tenso. Os primeiros minutos foram dúvidas e hiatos, a moça de branco No 1 confusa com suas coisas. Os olhos do dente só tinham um trecho de teto e os olhos das doutoras para si. Os olhos delas nunca cruzavam com os seus. O bisturi interrompeu esse intervalo de quase nada para mostrar ao dente que a anestesia ainda não tinha começado a fazer efeito: Aaahhhn! Que que foi, tá doendo? Mas num pode, você num devia tar sentindo nada! Lu, anestesia mais um pouco. Ao que a moça de branco No 2 respondeu invadindo outro pedaço de gengiva com uns tantos centímetros de metal cilíndrico. Cinco milésimos de segundo de espera paciente mais tarde, a moça de branco No 1 reiniciou a talhação.
Abriu-se a gengiva e o dente foi exposto. A anestesia ainda deixava a desejar enquanto o dente guinchava aqui e ali, agora sem resposta, depois da terceira dose de anestésico. Um fio de um gosto estranho fez a língua se esquivar e as mãos se estreitaram um pouco mais. Alguns termos técnicos foram trocados um palmo acima, numa breve discussão sem discordâncias. A broca veio e, ao não causar nenhuma dor, acalmou alguns músculos preocupados. A ela, sucedeu-se uma espécie de chave-de-fenda coberta de maus agouros. Uma veia fez-se notável na têmpora direita do dente, olhos fixos no novo instrumento que se aproximava. Este cravou-se na raiz do dente exposto como o faria em sua jugular, e um finíssimo jorro de sangue anunciou uma dor esguia e inequívoca evocada das entranhas da mandíbula. E isso foi tudo. Todas as veias de seu corpo em uníssono gritaram: chega! E o consenso mandou desistir. O dente tornou-se tão inanimado quanto seu papel ali exigia.
Cadáver sobre a cadeira, continuou a sangrar. A moça de branco No 2 contava para a moça de branco No 1 quem iria ao churrasco no próximo sábado, e o que ela iria vestir para tentar se aproximar de quem ela queria se aproximar. A outra ouvia e fazia o lado inquisitivo-monossilábico do diálogo enquanto abria mais espaço na gengiva com seu bisturi. Sob um pouco mais de pressão do que o usual, a lâmina recém-afiada escorregou, desceu até a garganta do dente e ali abriu um rasgo exibicionista. O descontrole breve e imprevisto levou boa parte do braço da moça de branco No 1 a depositar todo seu peso sobre a mandíbula aberta, que rompeu-se. Seus olhos se abriram muito e procuraram os da colega, que os receberam tranqüilamente: Não acredito! Nossa, eu não acredito nisso!
Que que foi?
Esqueci de pagar a conta do cartão! Deixei bem em cima da mesa onde eu tomo café pra eu ver antes de sair, mas esqueci! Que merda! Vou ter que pedir pra minha irmã pegar lá em casa e pagar. Ela vai encher muito o meu saco...
Puta, que merda! Num tem outra pessoa que pode pagar pra você?
Pior que não!
Porque você mesma num passa lá no almoço e pega?
Num dá, eu tenho um ciso atrás do outro hoje, e como esse aqui tá chatinho de fazer, pelo jeito vou ter meia-hora de almoço, no máximo!
Puta, que chato... Se eu pudesse, eu acabava pra você, mas eu num sei direito.
Não, relaxa. Eu ligo pra minha irmã, num vai ter jeito.
E assim, retirando seu pulso da poça de sangue que se formava na garganta, pediu um pouco mais de sucção e, com um bufo e um espasmo de cenho, seguiu em frente, livrando-se agora do jaleco.
A pele do rosto do dente pendurava um grito mudo e estático de horror, os olhos ainda abertos. As mãos abraçadas contavam um último apegar-se à vida que já não vivia mais. Todo o colocar-se sobre a mesa, enfim, inventava um quadro estranho que se vê em algum museu em lugar nenhum - logo antes do almoço, para que se esqueça logo.
A moça de branco No 1 intermitava seus resgungos de impaciência com um olhar que fixava o dente enquanto fixava qualquer outra coisa em qualquer outro lugar. O sangue havia crescido garganta acima de tal forma que se fez escorrer pelos cantos do grito até formar um tapete honroso no chão. A lâmina firme da moça de branco No 1 só encontrou um obstáculo à altura na coluna vertebral do dente, mas bastou que outro golpe persistente se fizesse para que, desviadas algumas vértebras inoportunas, o ar de cima do corpo encontrasse o ar de baixo. As doutoras discorriam sobre o abuso dos preços da lanchonete quando o bisturi se impôs ao couro da cadeira para expor sua espuma, que, uma vez superada, entregou à lâmina a resistência final. Ainda assim, a talhação insistiu por mais alguns segundos e trouxe de volta a mesma chave-de-fenda de antes, que tratou de terminar o serviço. Uma lasca do plástico duro e branco que separava a espuma do metal da poltrona soltou-se ao último toque da moça de branco No 1, o mais gentil de todos. Ela dispôs a peça sobre a mesa de instrumentos, livrou-se das luvas cirúrgicas e, com um sorriso aliviado para a colega, deu-se por satisfeita. Vamo comer antes que a lanchonete fique cheia?
As recomendações pós-operatórias e a receita médica foram colocadas pela moça de branco No 2 sobre o corpo imóvel, seguidas por algum imperativo sucinto que invocava a necessidade absoluta de se seguir a lei dos doutores. Os papéis tingidos de vermelho imitavam os sapatos das doutoras, que muito logo se fizeram invisíveis atrás da porta.
Ao sangue e aos papéis ensopados se juntaram uma semi-escuridão e o som da rua. Todos os outros dentes haviam sido retirados mais cedo, e Joanna restou só.
Até que a porta se abriu novamente, agora para um rosto estranho, muito atento, que se aproximou até perceber a poça no chão. Uma compreensão suprema se abateu sobre a mulher e suas fichas. O prédio, a essa altura, já estava vazio de doutores, e em seu lacrimejar entrecortado a mulher correu para bater seu cartão e decretar que a humilhação de enxugar o sangue alheio ia ter que ficar para a moça do turno da tarde.